O grande problema da humanidade é a intolerância, diz Ricardo Darín

Em "Argentina, 1985", ator interpreta o promotor responsável por levar a julgamento os membros das juntas militares que governaram o país e deixaram 30 mil desaparecidos. 


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Ricardo Darín não gosta de falar sobre como se preparou para um papel ou abordou um personagem. “Com cautela”, diz, fazendo piada, logo após pedir desculpas por se empolgar em uma resposta sobre o estado da democracia em seu país. O ator é assim: sem vaidades, atencioso, disposto a dar a melhor entrevista possível. Ele faz questão de elogiar para a reportagem a intérprete, cujos serviços não são utilizados na conversa durante o Festival de Veneza, porque ele entende perfeitamente o português – desde que falado devagar. A repórter compreende seu espanhol, e assim seguimos.

O ator de 65 anos bateu um papo com a ELLE um dia depois da sessão de gala de Argentina, 1985, dirigido por Santiago Mitre, que saiu de Veneza com o prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema (FIPRESCI) e é o candidato de seu país a uma vaga entre os indicados ao Oscar de produção estrangeira. O longa-metragem acaba de estrear no Prime Video.

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Ricardo Darín Foto: Divulgação

No filme, Darín interpreta Julio Strassera (1933-2015), o promotor responsável por investigar e levar a julgamento os membros das juntas militares que governaram o país entre 1976 e 1983, deixando estimados 30 mil desaparecidos. A averiguação conseguiu comprovar que os sequestros, estupros, torturas, assassinatos e desaparecimentos eram parte de uma política sistemática, por todo o país, de combate àqueles que lutavam contra o regime. “Era um contexto muito perigoso porque muitos dos torturadores, estupradores e sequestradores estavam livres. Então, quem foi ao tribunal dar seu depoimento tinha muita coragem”, disse Darín.

O chamado Julgamento das Juntas foi o maior desde Nuremberg, que condenou criminosos nazistas, e um caso raro entre as muitas ditaduras latino-americanas. O Brasil, por exemplo, nunca colocou no banco dos réus nenhum responsável por torturas e mortes durante o regime de 1964 a 1985. Na entrevista a seguir, Darín fala sobre a democracia argentina, suas esperanças e desilusões com o mundo e o ser humano.

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Foto: Divulgação


Como o julgamento mudou a forma como a democracia foi estabelecida na Argentina?
Não sei se mudou. Foi o pontapé inicial da democracia, que começou em 1983. Mas foi muito importante, pois a Ditadura deixou muita dor. O julgamento fez com que as pessoas tivessem esperança. E isso tem muito a ver com a democracia. Mas os seres humanos são caprichosos. Voltamos a errar, tropeçamos na mesma pedra. É estranho, mas é o comportamento da espécie humana.

Nós não aprendemos muito com a história, não é?
Isso. E não é privilégio nosso, nem do Brasil, nem da Argentina, nem da Espanha. É universal. É difícil para a gente aprender, incorporar, ser cada vez mais amplo, mais tolerante. O grande problema da humanidade é a intolerância. Intolerância com quem pensa diferente ou com quem é de outra cor, tem outra religião, outra inclinação sexual. Somos intolerantes – me incluo, porque embora se lute pela tolerância e pela igualdade, há traços que são herdados da nossa criação, de séculos de má educação, para dizer com suavidade.

Quase todos os países têm histórias de dor. Acha que por isso o filme gera tanta identificação?
Eu acho que sim. É muito difícil encontrar lugares no mundo onde coisas semelhantes não tenham acontecido. Abusos são cometidos em todos os lugares. Direitos humanos e liberdades individuais são violados em todos os lugares. Os cidadãos se veem atropelados pelas instituições. Há essa nova ideia circulando pelo mundo de pagar agora e reclamar depois. Como é isso? No filme Relatos selvagens (2014), meu personagem em um ponto fala algo muito engraçado, mas triste. Ele discute com um funcionário público e diz: “Onde fica o escritório de pedido de desculpas quando cometem um erro?”. Esse escritório não existe. As empresas nem levam isso em consideração. Há uma sensação de que estamos nos acostumando com isso. Eles nos domesticaram. A vida é dura, não é? Não quero comparar porque com certeza deve ter sido pior 200 anos atrás. Você não podia nem levantar a mão para reclamar. Mas ainda há muito a aprender.

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Foto: Divulgação

Acha que um dia vamos aprender a ter mais tolerância?
Eu tinha esperança de que sim. Quando éramos jovens, dissemos que no ano 2000 íamos refletir e nos dar conta do que estamos fazendo com o planeta, de como tratamos nossos semelhantes. Isso não aconteceu. Tomara que as novas gerações tenham a esperança de ver isso acontecendo. Mas quando vemos o que estamos fazendo com o planeta, que é a nossa casa… Somos uma espécie muito estranha. Por isso, precisamos do cinema e do teatro, da literatura e da música.

É isso que mantém a sua esperança?
Sim. Acredito que as artes nos ajudam a supor que existem possibilidades melhores, superiores, curadoras. Diante de uma obra de arte, não precisamos de muitas explicações, pois ela nos move de uma forma ou de outra. As artes são transformadoras da realidade, nos dão ferramentas, elementos para poder imaginar que podemos avançar, ser melhores e provavelmente até estamos fazendo isso. Mesmo que não percebamos, provavelmente estamos avançando porque 200 ou 300 ou 400 anos atrás deve ter sido terrível. Nós avançamos. Mas talvez não consigamos ver tolerância nesta era. Quem sabe. Espero que daqui a 50 ou 100 anos as pessoas se respeitem mais.

Quando o julgamento aconteceu, a Ditadura tinha acabado de terminar. Passados quase 40 anos, ainda teme pela democracia na Argentina?
Não. Não sei o que acontece quando falamos de democracia, parece quase uma abstração. Mas ela é feita não só das instituições e dos funcionários, mas dos cidadãos. A cidadania na Argentina está estabelecida de uma maneira diferente. Os cidadãos não estão mais dispostos a aceitar ditaduras. Espero não estar errado. Às vezes, tenho minhas dúvidas, mas acho que democracia é uma questão de exercício. Não é tema de discurso. Há pessoas que deram a vida para defendê-la. Não podemos nos calar. Precisamos defender os outros. Quando testemunhamos uma injustiça, devemos nos envolver, não olhar para o outro lado. Eles nos convenceram de que temos que fingir que não vimos. Isso está errado. E a arte em geral é o que nos leva a ousar, a recuperar a dignidade pela qual vale a pena lutar pelos direitos individuais. Somos seres singulares. Cada um de nós é um mundo. A vida é muito difícil. Não invejo a vida de ninguém, porque cada um tem um fardo.

Mas essa solidez que você vê na democracia argentina pode ser um efeito de o país ter lidado com seu passado, com o julgamento sendo um exemplo. No Brasil, onde não houve isso, temos pessoas na rua pedindo a volta da Ditadura.
Cada um tem que fazer o seu próprio caminho. Os tempos de maturação são diferentes, as realidades são diferentes. O Brasil é um país enorme e maravilhoso, com muita gente. Na Argentina, somos muito menos. Vivemos em realidades diferentes, mas semelhantes, com características particulares de cada lugar.

Ao fazer um filme como Argentina, 1985, o trauma de ter vivido a Ditadura volta?
Os traumas ficam marcados no inconsciente coletivo. Não são apenas individuais. No inconsciente coletivo, todos nós, de uma forma ou de outra, vimos, sabemos de um caso, temos um conhecido, um irmão, um parente, um amigo, alguém a quem aconteceu alguma coisa. Você não sai dos traumas coletivos individualmente, você sai falando. É preciso ter coragem, colocar as coisas na mesa, enfrentá-las. Mas cada um tem seu próprio tempo. Você tem que ser prudente e respeitar o tempo dos outros.

O filme coloca de maneira muito clara que as pessoas que foram presas pela Ditadura podiam até ser culpadas, mas precisavam passar pelo processo judicial. Elas não tiveram o mesmo direito dos comandantes militares, mais tarde, na democracia. É muito difícil negar isso, não?
Strassera disse: “Eu não defendo ninguém. Meu dever, meu trabalho, é acusar e mencionar o que está errado”. Ele mostra o que aconteceu. Não estamos dando respostas. Estamos colocando uma grande questão de maneira honesta e não partidária. O que eu mais gosto no filme é que ele passa muita humanidade e tenta resgatar a dignidade da verdade e da justiça.

 

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